sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Minuto de Excessão

Senhor de seus sentidos, como quem já atento abre os olhos, bruscamente despertou. Sim, não havia dúvidas, o dia era aquele mesmo; a manhã, aquela tão esperada; aquela, certamente era a data que há tempos marcara para mudar radicalmente seu modo de vida, que a tanto tempo marcara para nascer de novo.
As seis horas, o relógio, presente que a firma dera-lhe quando após anos de árduo e fiel trabalho finalmente fora escolhido funcionário do mês, provavelmente seria o único resquício de seu velho eu. Porém até dele abdicou, estava decidido, iria virar a mesa e não queria nada com cara de passado. Foi com uma pancada forte e certeira que parou a campainha, bips que incontáveis vezes cortara seus sonhos no meio e que naquela manhã entravam nos seus ouvidos como facas.
Virou-se para ver o teto. Sim, pois mantinha o hábito de dormir de lado, do lado direito, uma tia havia dito-lhe que era bom para o fígado.
-Engraçado. Pensou.
Nunca antes tivera tempo para reparar o neutro mistério que transmitia-lhe o teto. Aquelas inconstantes pinceladas de cor cinza-claro, obra do vizinho pintor à quem à contra gosto foram entregues várias prestações que juntas equivaliam cinco semanas de trabalho, tornaram-se, de repente, até interessantes.
Na abstração das pequenas formas geométricas que deixadas pelo pincel se juntavam quase que harmonicamente ao relevo da antiga laje, viu ele paisagens, lugares desconhecidos, vales e montanhas que jamais sonhara em conhecer. Viu até, imaginem, um carro esporte e uma bela guria nua. Surpreendeu-se com uma imaginação que ignorava possuir.
Chegou a contrair o abdômem no intuito de se levantar, mas esitou, agradava-lhe ficar na cama e pensar mais alguns segundos na intensa e boa vida que levaria dalí em diante. Vida na qual diria sempre, e só, o que lhe desse na telha, sem medos, sem bloqueios, sem hipocrisias nem preconceitos. Vida na qual não mais seria tímido com as mulheres, na qual finalmente seria livre. Imaginou o quão prazeroso seria se demitir e viver a vida. Refletiu brevemente sobre o pleonasmo do qual desconhecia o significado:
-Viver a vida? Engraçado.
Sentiu a endorfina em suas veias como quem reconhece uma amigo de infância, daqueles que nunca mais se viu. Ensaiou um sorriso, deu uma longa e confortável espreguiçada, virou-se para o lado esquerdo e...
O relógio marcava seis e um.

Obs: José prometeu ao seu chefe jamais se atrasar novamente.

11 de Abril de 2003

Um comentário:

  1. Ora durmo de bruços, ora de lado, ora não durmo ... e não uso relógio !
    Buongiorno amore ! Grazie

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