segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A Língua dos Anjos

I

As gotas caem, e com elas eu.

Banham, rafrescam, e sobre a semente destilam a luz da vida.
Como a existência da planta e de todo este mundo
Que cresce e segue delineada pelos limites do tempo,
As gotas se unem e se deixam limitar pelas encostas,
Suprem os rios, e com elas eu.

Em curvas e curvas, em longas descidas,
Percebo como é grande a atração que amputou minhas asas,
Como é grande o fascínio pelo abismo.
O oculto é belo e intrigante ao ponto de dar medo,
Ao ponto de dar medo e ser bom,
Ao ponto de dar medo e ser bom como uma queda.

Cachoeira.

Torno-me mais forte,
Turvo e sujo,
Minha cristalina essência se confunde, mistura e se esconde.
A anunciação é o próprio delta,
Que amplia o medo, estreita o tempo e me faz pequeno.
Agora, como as gotas, sou o tudo com aparência de nada,
Sou sozinho, pois me perco entre os milhares de milhares.
Sinto como nunca antes o gosto do sal, o cheiro do mar,
O barulho das ondas, o calor da praia.

Abro os olhos e percebo
Que um só grão de areia tem em si todas as cores do universo.
Percebo a sutil, porém constante força
Que une tudo e todos a Um Só.
A relatividade me salta aos olhos como o farol aos de um felino,
Entendo que no elemento está a compreensão do todo,
E no todo a compreensão e o sentido de ser do elemento.

Alguém põe os lábios sobre os meus,
Tira água do meu peito,
E n’um beijo ganho a vida!

Estranha condição humana,
Tão forte e frágil,
Tão contrária a si mesma.

II

Sem demora dentro de mim me perco,
Do vermelho ao violeta detenho-me sobre minhas próprias limitações,
Exploro apenas a superfície da essência.

É espantoso o modo como o objetivo se transfigura
Quando deste ponto de vista o vejo.
Irônico raciocínio analógico,
Que de tão ingênuo toma seu próprio fruto de referência,
Na desesperada busca pelo concreto encontra a total abstração;
Que de tão ingênuo se acha astuto,
Reflete sobre suas reflexões e as contesta,
Até que contesta suas contestações e reflete sobre elas...

Pensamento que pensa pensar,
quando na verdade só escuta.
Intelectualiza o mundo,
Por ser contaminável, facilmente se confunde.
E no vicioso fim,
Antes de um já anunciado recomeço,
Com um já contastado refinal,
Conclui cegamente que tudo não passa de muito nada...

Então vagamos juntos,
Eu e minha nova alma humana,
Meu corpo e minha mente.

III

Pra alguém que nasce sendo adulto
Pouca coisa faz sentido.
Sei, a vida é algo misterioso,
O quanto eu ainda não sei.
Mas entre tantos antagonismos,
Tantas incertezas,
É verdade absoluta a beleza destes olhos!
Identidade única de minha redentora
Que me livra das ondas e me acode na praia,
É o olhar que mira e hipnotisa,
Me rouba e me faz bem.

Sou atingido vertiginosamente por um turbilhão de sentimentos,
Dúvidas e medos,
Ambições e paixão
Caem sobre mim como em um legítimo desta espécie.
Agora sei realmente
O quão sensíveis são os humanos aos acontecimentos em Sorites,
E o quão importante é salvar Arrogância.

Pergunto-me até onde vai a jurisdição da sorte na experiência dos seres,
Seria possível que o acaso seja o verdadeiro mestre-de-obras de nossas vidas?
Se a mulher de olhos brilhantes não impedisse meu afogamento,
Onde estaria eu agora?
Resistiria a tal colapso?
Apavoro-me mas sei,
São os sentimentos mundanos que estão me influenciando
E fazendo com que eu tenha vãs indagações,
Elabore planos para mudar o que em verdade não posso.
É extremamente difícil, ou talvez impossível para mim,
Enquanto dispuser apenas de pensamentos e raciocínio humano,
Entender como passado, presente e futuro são um só em Sorites,
Mas minha recordação angelical sabe que assim é.
Ainda lembro que muitas coisas
só os vinte e quatro membros da Divina Corte entendem
e sabem o seus porquês.
Eu sei ainda que embora agora tenha corpo humano,
Minha consciência é o divino sinônomo de Eu,
E Ela ainda existe!

IV

Arrastando-me para fora da água, benevolente, revela-me seu nome,
Tentando insistentemente que eu fale, Abigail pergunta-me coisas.

Questiona sobre onde vivo,
Quem sou,
Mas não respondo, estou atônito com meus próprios pensamentos,
E com a fuga de idéias, sequer consigo falar.
Em seu desespero ela corre pra longe.

Deitado na praia experimento uma das consequências das atitudes de Arrogância: A solidão.
Choro tudo o que sinto,
O simples fato de sentir-se só
Deixa vir à tona o grande vazio de minha alma,
O que por sua vez produz imensa tristeza.
Solidão, solidão, solidão! Que falso sentimento é esse,
Que dentre todos os seres racionais ataca exclusivamente ao ser humano?
E por que traz tanta dor?

Abigail volta com um grupo de pessoas, todos me confortam.
Não tenho mais duvidas de todo o desarranjo
Que Arrogância causa a este mundo.
Um dos homens que vieram ao meu auxílio tem o corpo curvado,
É muito fraco e tem na pele ecessivas rugas,
É o primeiro que vejo com a anunciada miséria-do-envelhecer,
Que abate todos os seres neste mundo
Pelo tempo em que Arrogância persistir em sua morte.

Cegos de ignorância todos do grupo imaginam eu como o único doente
E carregam-me a procura de socorro.
Em ruas imundas vomito,
Não acredito no mundo podre que vejo,
Choro por compaixão dos homens
E envergonho-me por agora ser um deles.

V

Acordo em um leito.
Quase nada é nítido,
Não sei quanto tempo passou até que eu chegasse aqui,
Mas sei que isso não importa.
Minha prioridade é tentar salvar Arrogância,
Dar a ela um novo nome
E reestabelecê-la como lesgisladora em Sorites.

Não tenho idéia de como fazer isto,
Entretanto sei que a vida de todos depende da reestruturação
Da sempre perfeita Divina Corte.
Sinto-me bem fisicamente, por isso levanto.
Penso em fugir, mas sei que é inútil.
É como se por alguns instantes eu tivesse a real consciência
E percebesse que todas as paredes, ruas, montanhas, mares e planetas
Fazem parte de um imenso labirinto,
Edificado sobre si mesmo,
E limitado pelo fim do infinito.
Do qual a saída, se houver uma, precisarei encontrar.

São frios os corredores desse lugar.
Observo a distância um médico cuidando de sua paciente,
Uma pobre senhora que traz o sofrimento na face marcada
E somente frustração em seu olhar.

Os humanos são as grandes vítimas de todas as atitudes de Arrogância,
Mas se amadurecerem em auto-domínio e resistirem,
Serão imediatamente na mesma medida recompensados
Em nome do equilíbrio universal,
Em acorde com as leis escritas pela legisladora Justiça.

Meus semelhantes,
Indivíduos independentes,
Partes de mim.
Não é fácil entender,
Mas minhas lembranças ancestrais,
Meu íntimo consegue.
Não haverá ninguém realmente vivo,
Em nenhum esconderijo,
Enquanto alguém ainda portar consigo,
Mesmo que um diminuto resquício de morte.
E isso nos revela Um.
O fim da vida é epidemia veloz,
Que aqui se espalha rápida como o tempo,
Com furor semelhante ao de animais famintos,
Com o poder de incinerar eficiente como o intrínseco ao fogo.

VI

Novamente os sentimentos mundanos,
E a quebra da harmonia entre este mundo e Sorites me iludem.
Sei que estou embriagado pela pressa,
Mas não consigo evitar seus efeitos.
Esqueço da desimportância do tempo para realização das verdadeiras obras,
Em um impulso interno
quero mostrar a todos a peça que falta para o mundo fazer sentido,
Em todos vejo aliados, soldados magros, famintos de justiça.

Sim, sou humano,
Sinto-me humano,
Agora conheço a batalha que é travada na mente,
Descubro a importância e a dificuldade que tantas vezes há nas decisões.
Uma parte de mim luta contra a outra,
Como se essa outra não fosse a mesma, posto que é.
Porque ninguém pode ser dois,
E qualquer que assim pense está perdido.
Eu sou três,
Oito,
Milhares,
Uma discussão de egos,
Mudas vozes que em mim ecoam como trovões!
Caio de joelhos,
Olho para os lados como quem procura algo,
Mas tenho a vista altiva, desfocada,
Semelhante a de quem pensa calado, olhando para o nada.

Meu brado é em vão,
Os ecos me acusam:
“Deus” vira “Fracassado”.
Minha prece ressoa como palavrões de uma língua morta.
Ou quem sabe inúmeras frases sem sentido
No idioma de um lugar distante,
Longe de mais para que alguém possa me ouvir.

Sou a árvore que cai na floresta e ninguém vê,
Sou a pessoa que não existe, porque de ninguém é intima.

O chão continua gelado,
As portas fechadas,
A luz vermelha acesa no fim do corredor...
Mas em minha mente as referências se perdem,
Surge o colapso,
Se torna difícil a construção do pensamento.
Tudo isso, tudo isso,
questão de serenidade e concentração, inprescindíveis ferramentas.
Novamente estou só com as lágrimas,
Sinto que já começo encarar a dor como normal,
Como posso ser tão fraco?
Como podemos?

VII

Olho as estrelas,
Eis a Via-Láctea, recordo-me como as legisladoras a construíram,
Parte por parte, cada estrela, cada vida, sintetizada com amor.
Amor que agora se revela em mim,
Na glória de nossa vitória
E na beleza de uma simples morte.

Há tanta coisa que ainda não entendo,
E a cada mistério que decifro,
Surgem outros enigmas que eu nem desconfiava existir.
Mas isso simplesmente de nada importa, só preciso continuar!
Para os que se cansam cedo e logo param no caminho
O tempo vem e consome tudo;
Mas para os que persistem na jornada,
Ainda que não possam mais ser rápido,
A eternidade aguarda paciente.
Descobrir e aprender será minha regra de ouro,
Subindo a escala, um degrau de cada vez,
Pra tudo fazer sentido.
Poderei sim entender a natureza,
Ela me conta seus segredos pois sou parte dela!
Tudo é possível,
Desde que se esteja apto a pagar o preço!


2001

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